segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O grande idiota cego

  Quem é esse grandioso que realiza seus desejos como se tivesse um gênio da lâmpada a seu mando? Percebo que me olha de cima, mas não vê nada, pois somos pequenos demais pra ele. Talvez na sua sábia sabedoria ele saiba que nós, meros micróbios mortais, existimos e interagimos com sua ilustre presença. Porém, se o sabe, faz questão de esquecer, pois em sua mente só há espaço para seu umbigo e sua tão quanto (ou mais) grandiosa flor.

Lírio raro que só existe em seu planeta. Seu cheiro maravilhoso o entorpe fazendo-o esquecer de si por alguns breves milésimos de um suspiro. Talvez sua maior admiração ao seu lírio esteja nessa qualidade, quase inata, que o faz esquecer de si mesmo, mesmo que seja por um pífio tempo, pois a qualidade do prazer independe das quantidades de medida.

Assim o gigante idiota dorme a maior parte do dia e nas tardes quentes ou frias ele abre os olhos para sua única flor única apreciando sua beleza infinita e seu cheiro entorpecedor. Disso ele vive, da beleza inteira (nem a mais, nem a menos) de sua pequena flor. Que por ser completa gera essa infinita admiração, principalmente naquele grande idiota cego que não entende a simplicidade. 

deManda

Manda embora essa demanda
Que me suga e me cansa.
Não aguento esse tormento
De ter a todo momento,
Que me posicionar.

O que me falta é sentido, amigo.
Não adianta fugir, nem fingir,
Que quem demanda manda.

Na verdade em certa idade
o que se quer é se embriagar.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Perdido? Confuso? Cego?



Talvez eu tenha encontrado um caminho, assim como Raskolnikov depois da morte de Marmieladov. Porém a luz que ilumina essa estrada é tão forte que ofusca a visão, me impedindo de avistar mais à frente.

Sigo cada dia mais convicto, menos cansado e confuso. Só que a dor e o vazio no peito ainda se fazem presentes. Não me esquecem e nem me abandonam. Malditos! Por que não vão embora? Quero amar! Me entregar, sofrer de amor é melhor do que sofrer de nada.

Ah paixão, venha e me aqueça, mas não se acomode, pois sei que não és amiga. Passa logo e vai embora! Mas se for bem recebida, com as devidas honras e tudo o mais, deixa a casa cheia de esperança. Esperança de que após a sua saída tenha ficado muito amor para brotar.

Psique e Eros


Psique foi impedida de ver a face de Eros como eu  fui impedido de viver a infinitude do amor. Apenas sinto uma amostra ou tenho um mero vislumbre da plenitude que o amor trás.
As irmãs Inveja e Desconfiança me enganaram, me deixaram perdido e com medo e por isso perdi o amor que tínhamos. Talvez, seguindo o eterno mito, eu tenha que passar por muitos obstáculos e me devotar aos Deuses, para que como Psique eu possa ser capaz de recuperar esse amor perdido ao beber do cálice da imortalidade.
Doce ilusão, os mitos me inspiram assim como inspiraram milênios,  mas não hão de me salvar. Como podem se nem sequer tenho coragem de encerrar essas feridas, essas sim eternas, através da também eterna morte? Ah! Talvez aí, na foice da grande e poderosa deusa morte, esposa fiel do amado Ades, eu possa encontrar o que me foi proibido. A contradição máxima, o êxtase dos conflitos, o achado sublime. Na eterna morte o infinito amor.




segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Sou

Sou essa constante inconstância,
Essa contradição de tradições.
Ser ferido à procura de abrigo,
Incansavelmente cansado e
Insensatesmente sensato.

Me deixei ser isso e
Continuarei a ser.
Definido como indefinido,
Certo da incerteza e
Feliz, apesar da tristeza.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A delicadeza do amor

Na dor caminha no jardim do coração
Busca o que se perdeu
sabendo que não vai encontrar
Acha o que não procurava
Escondido no meio da mata.
Era o amor.

Escondeu-se o tempo inteiro, a vida toda
Derrepente acha toda a vida em um beijo
                                    [doce e fulgaz
O sangue arde e ferve
até quase entrar em ebulição
Não há saída a não ser sorrir
o resto do dia, o seguinte e o depois.
É ridículo, mas é o que é
Mais ridículo seria se não fosse.

Escapar? Mas como, se ele só sabe se esconder?
O amor o domina de maneira que chega até a doer.
Já sabe! O jeito é esconder a vontade de esconder.
A dor não doí tanto quanto não viver.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Sentir e escrever

Sonho, vivo,
falta substantivo

Arrisco rabisco,
num instante risco

O sensato esculacho
sem deixar traço

Jogo, demoro,
palavras onde moro

Insisto, demando,
não escrevo o que mando

Verbo expiro,
onde menos miro

Navego, aprendo,
nem tudo compreendo

O sentimento cubro
mas na poesia descubro

sábado, 20 de outubro de 2012

Reparador

Repara a dor
Repara
Repara a dor
Para

Repara a dor
Inventa:
Congelador
Tenta

Repara a dor
Repara
Repara a dor
Para

Liquidificador
Aumenta
Despertador
Atormenta

Repara a dor
Repara
Repara a dor
Para

Reparador
Contenta

Referência

Quero o seu sermão
Diz que eu to errado
Me põem no chão
Cansei de jogar dado
Viver de superstição

Nessa escrita carente
Me falta referência, citação..

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Vela

Linda pele, tanto vela.
Com um toque, minha mão 
A derrete como vela
No fogo da nossa paixão.

     A paixão acaba, pois é um fogo que queima intensamente, consumindo todo o combustível que o ascende e então não sobra mais nada. Porém me previno e dou um basta a esse incêndio, antes que nos devore, levando com ele nossa amizade e nossas singelas e confusas conversas! Esse fogo há de arder em você de novo, mas não se engane. Pois apesar de te esquentar nessas frias noites solitárias, ele queima, quem com ele brinca! Leve a sério esse fogo e ele há de te esquentar e te dar vida sempre que realmente precisar.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Não era ela


Depois de muito tempo sem sentir amor
Passou-se longos anos remoendo dor
Viveu intensamente alguns poucos meses
Porém pensou neles diversas vezes

A dor e a solidão lhe foram companhia
A luz e a esperança não deram as caras
Até que encontrou a cura pra essa fria

Foi tudo num instante naquele dia
Ela disse: “a vida é estranha e tão sozinha”
Olhou no horizonte o sentimento que lhe vinha
Sentados na calçada daquela suja via

Ficou, então, esperando a hora certa
Viajou no inverno pro estrangeiro
Mas quis que tudo fosse bem ligeiro (ai ai)
Voltou e alegrou-se ao ver a porta aberta

Mas tudo não passou de um terrível engano
Tudo que ela queria era amizade (ai ai)
Agora o que lhe resta é largar seu plano:
“De amar e deixar a mediocridade”








segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Linhas paralelas

Somos linhas paralelas que nunca se cruzam, ou talvez, só no infinito.

Porém andamos perto um do outro, na mesma direção, mas nem sempre com o mesmo sentido.

Quando nos movimentamos entramos em ressonância e só assim sentimos um ao outro.

Nunca nos tocamos, nunca desejamos a mesma coisa, nunca sonhamos o mesmo sonho.

Paralelas como as cordas de um violão, que ao tocar a mesma nota vibram em perfeita harmonia

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Madrugada de lua minguante

Batem na porta, é madrugada de lua minguante. Me pergunto quem é, mais por hábito do que por interesse. Não sei que horas são, mas estou sem sono. Resolvo abrir a porta, me encontro, na soleira de minha porta, com a figura de um lobo solitário bonito e calmo, sinto uma serenidade no ar. Me surpreendo por um instante pensando em quem bateu na porta. Deixo o lobo entrar, mas ele permanece parado na entrada da casa. Me abaixo espontaneamente até a sua altura e olho em seus olhos azuis profundo sem medo. Passo a mão em seu pelo macio e recebo, de súbito, uma mordida feroz no braço. Acordo de meu devaneio e me vejo novamente de frente para o lobo, abaixado. Levanto e viro de costas para ir em direção a cozinha. O lobo entra silenciosamente e vagueia pela casa impondo respeito. Pego um copo d'água e depois fecho a porta da entrada, agora estamos eu e ele sozinho, estou com medo. Sento na poltrona da sala e penso em quem bateu na porta. Levo o copo d'água à boca e chego a uma conclusão. Me sinto confuso, fui eu mesmo quem bateu na porta.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Tempo

Tempo, tempo, tanto tempo
Apenas tempo, cada tempo
Quanto tempo que me falta?

Olho o tempo, mas tempo que
Não faz passar o tempo. Tenho
Tempo, mas não temos tempo.

O tempo é lento quando tenho
Tempo para pensar em você
                           [sem te ter

Porém quando chega o tempo
e finalmente temos tempo. Ele
Escapa em um só tempo sem
Deixar tempo para deixar de
                             [te querer.

Só o tempo que temos vai dizer,
Quanto tempo temos para deixar
                  [o espaço que temos.

Cada um tem seu tempo.
O que nos falta é o nosso tempo.
O tempo certo há de vir com o tempo.

Mas quanto tempo eu perdi
Escrevendo sobre o tempo?

Tempo o bastante para finalmente te ter.

Tempo para conversarmos sobre o tempo
                         [que passou sem nos ver.
Quero tempo, mas o tempo deixa espaços,
                                                                              [quebra o ritmo de viver.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Terrivelmente vivo

Hipocrisia aqui, hipocrisia lá.
Faço o que me exigem, mas
Não exijo o que me fazem.

Não tenho ódio no peito, mas
Também não tenho amor no
Coração. Sinto um vazio na
Vida, mas preencho com ilusão.

Sofro com a miséria ao redor,
Mas depois me tranco na solidão.
Critico e protesto por alguns instantes,
Mas volto para doce rotina de então.

Fantasmas em você, fantasmas em mim.
Vilões e heróis se confundem nas manchetes
                                                    [e novelas.
Tanto faz! Contanto que eu continue assim:
                                       [terrivelmente vivo.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Mito do lobisomen barroco


O que fazer nesse fim de tarde onde a chuva ameaça cair e desabar o céu?
O que faço com a vida incerta, confusa e sem mel?

O que faço com minhas aspirações, desejos e sonhos que tampo com tarefas insensatas?
O que faço comigo mesmo, sozinho no meio dessa concreta mata?

Por que não posso simplesmente esquecer o que nunca foi dito?
Por que não posso dizer tudo sobre esse terrível mito?

Mito da vida líquida no meio das pedras, mito da correnteza incansável que me cansa.

Mito do lobisomen barroco que sofre com seu anseio da lua cheia, pois quando é homem se contorce arrependido e confuso do que fez quando lobo. Porém, ao mesmo tempo, deseja ser-lo para que cessem seus conflitos que ardem como fogo.

Ou só lobo ou só homem! Por que é que tinha que ser logo lobisomen?

sábado, 14 de abril de 2012

Noite fria

Você tem um sol dentro
Um potencial que não aguento
Vê-lo se esconder e se ocultar
Atrás do seu japonês olhar

Não me diga que não quer conversar
Não me venha com essa de se deixar levar
O sentimento vem também com a razão
Em uma noite fria me preocupo com a paixão

Você me dá algo que adoro
O seu amor me preenche a'lma
Mas não sei se mereço e então oro
Se relacionar é pra mim um trauma



São todas palavras vazias de uma noite fria


Eu não oro! eu choro, choro, choro.

E pra que? Vai saber...
Talvez seja a hora deu realmente me conhecer

Falo, falo, falo, mas cadê meu falo?

Fujo dos sentimentos através das palavras
Não sinto o vento, pois só há portas com travas

Me esqueço, se esqueço de nos esquecermos

Com você de isca, me devoro
 E assim também te devoro

Uso, com pesar, dos vícios pra não ter que pensar

Gosto de ficar cansado
Não quero me enfrentar
Só quero dormir e me sentir amado
Nesta noite fria sem luar

domingo, 1 de abril de 2012

Viver sozinho

Viver sozinho nem sempre é o acaso que escolhe
Ás vezes nos organizamos com tal complexidade
Que quando o amor vem desorganiza e desconstrói
Assim decidimos pela solteirice no auge da idade

Fazemos então da rotina uma constância
Trabalhamos sem reclamar hora extra
Assistimos toda noite comédia romântica
Para rirmos e esqueceremos da nossa amiga Tereza

Acordamos bem cedo com o desperta-dor
Comemos depois aquela dura torrada
Ouvindo no jornal um debate mediador
 E de repente sentimos um vazio, uma porrada

O amor demora (e nos faz perder o ar)

Devagar divagamos sobre como se amar
Lentamente, mas com ânsia, queremos lá chegar

Esperamos com paciência, relutância e dor
Lutamos contrários ao instinto e a paixão
Violentamente quase perdemos a razão
E no final encontramos, com demora, o amor

sexta-feira, 23 de março de 2012

Chamar

Chamo chamo chamo
Ninguém responde...
Amo amo amo
Não sei quem, nem onde...

Na caverna a chama de amar
Aquece e afasta tormento
Porém se acaba em um piscar
Por um frio e terrível vento

Só agora percebo o que passou
O que queimava era palha da paixão
Por isso quando ela me falou
Que não me amava, cai na solidão.

O amor é um chamado
Que pode ir para toda direção
Mas quando no centro mira o dardo
Deus parece dar a solução

Não a devo culpar pelo meu íntimo problema
O que sinto vem de dentro e com o outro o encontro
Tudo parece se encaixar como num teorema
A vida é mais que bela e agora me sinto pronto

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Na vida; A morte (ou vice-versa)

Na vida procuro quem hei de ser
Até encontro amigos, festas e amores
Mas descubro, para me encontrar é preciso morrer
Não importa do que.. A vida não é só flores

A morte, a todos, há de vir
Mas se morrer, o fim, não for?
Ai de mim se ela descobrir
Que é por ela que morro de amor!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Questões sobre o poliamor


                       I

Manuela subia o elevador segurando o choro, pronto pra sair. Tinha medo que alguém a visse naquele estado. Ela não tem vergonha de chorar, mas quando as pessoas não entendem a situação em que ela está, podem achar que ela é fraca e ela não quer isso. Abre a porta e seu corpo se perde no espaço da casa, se sente sozinha e cai no chão. Foi uma queda proposital, ela não aguenta mais fazer esforço pra nada, quer só descansar e então acaba dormindo. Sonha com o vazio e acorda sentindo o gelado do piso de madeira. Levanta e vai para o sofá da sala, começando a recordar o que se passou.

Naquela chuvosa tarde vazia ela se encontrou com ele, mas não valeu o dia como naquela musica do Ira. Ele queria acabar aquilo que nem havia começado, queria manter a amizade, mas ela sabia que isso não era possível. Davi e Manuela estavam se encontrando fazia alguns poucos meses, mas não era nada sério, afinal, nenhum dos dois queria esse tipo de relacionamento. Eles ficaram no pilotis do prédio, pois ele tinha receio de não conseguir falar aquilo pelo qual veio. Não demorou muito para começarem a falar sobre O assunto, Manuela havia percebido o tom de seriedade na voz dele ao telefone e não quis perder tempo.

Davi falou sobre como as coisas estavam meio estranhas entre eles, e que não se sentia mais confortável com a situação na qual as coisas haviam chegado. Parecia haver uma pressão ou uma espécie de compromisso invisível entre os dois que estavam deixando as coisas meio forçadas. De certa forma Manuela entedia a situação, realmente via que as coisas estavam um pouco mecânicas e quando eles se encontravam parecia que toda a conversa eram apenas preliminares para o sexo. Não parecia haver outra intenção, era só sexo. Ou será que não?

 As conversas eram muito boas também, eles filosofavam sobre muitas coisas principalmente sobre arquitetura, que era o tema favorito de Davi. Assim, apesar do pouco tempo que se conheciam, eles tinham discussões bem profundas, às vezes, até sobre o tipo de relação que estavam tendo. Eram curiosos para entender se era possível esse tipo de relacionamento: sem compromisso e quase sem afeto. Faziam-se perguntas do tipo: “Amor verdadeiro existe?”, “Existe o amor único ou a monogamia?”, “Existe amor sem ser afetivo?”. Eram perguntas estranhas, incomuns, porém não conseguiam deixar de fazer-las, pois eram demais importantes para ambos. Davi parecia ser o que mais conhecia do assunto, já havia lido e discutido sobre esses temas, sempre os referindo a um tema mais amplo do qual costumava chamar de “Questões sobre o poliamor”.

Questões sobre o poliamor (II)



                   II

Manuela agora estava com o computador ligado navegando por páginas das quais nem ela mesmo se lembraria. Na verdade sua mente ainda navegava nos acontecimentos recentes com Davi. Assim, como de súbito, ouviu o barulho de um ônibus passando na rua e lembrou-se do seu primeiro encontro com ele.


           Viram-se pela primeira vez em um ônibus quando Manuela voltava da aula. O “busão” estava cheio, era horário de pico. Manu entrara e mal conseguia se locomover, mas logo viu que o fundo não estava tão cheio e foi tomada por uma sequência de pensamentos: “Ah! Eu não entendo o porquê das pessoas não se espalharem melhor nessa droga de ônibus lotado!”, “Pelo menos assim todos saíram ganhando!”,... “O que ocorre é que as pessoas da frente não têm coragem, ou até mesmo vontade, de se esforçarem para irem mais para trás onde há mais espaço”, “As pessoas que estão mais próximas do fundo não tem a preocupação de chegarem mais para trás e abrirem espaço para os mais apertados. Resumindo: não existe uma consciência coletiva”,... “Somos um bando de alienados!”, ”Espera, eu não sou alienada! Eu estou pensando sobre isso, eu posso fazer diferente!”,... “Puxa, mas como é difícil quando você parece a única pessoa a se importar com isso”,... “Bom, independente do quanto seja difícil eu preciso fazer alguma ou se não eu me tornarei alienada mais cedo ou mais tarde!”, “Sem contar que é importante eu tomar a iniciativa já que me incomodo com isso”.

Dessa forma Manuela que estava com extrema dificuldades para se locomover pediu licença para passar a uma pessoa ao lado, do qual recebeu a seguinte resposta: “ – Passar pra onde?”. Porém o que, a princípio, seria uma resposta desanimadora fez com que Manuela mesmo sem a passagem se esforçasse ao máximo para alcançar o tão desejado espaço vazio no fundão. Nessa hora ela se sentiu muito bem consigo mesma, pois havia conseguido algo do qual sabia era a coisa certa a se fazer, e que poderia até servir de exemplo para os mais atentos.

Foi então que, como uma recompensa divina pela sua atitude, a imagem de um menino sentado na ultima fileira do ônibus interrompeu seu fluxo de pensamento. Era um jovem de aparentemente a mesma idade que ela, que tinha uma beleza sem grandes chamativos, mas algo no seu “estilo” chamava a atenção de Manuela. Usava uma roupa de cores neutras com um jeito alternativo e charmoso, seu cabelo era de um corte moderno que apenas era visto em jovens mais ligados com o mundo da moda. Sua pele era de uma brancura pura, sem nenhuma miscigenação como era comum nesse país e principalmente nesse ônibus. Era de se concluir (como o próprio leitor já deve ter o feito) que esse jovem era de uma classe econômica abastada, isso a princípio pode parecer a forma mais comum de preconceito, porém é somente uma questão de constatação (pelo menos o é para esse que os escreve). Também Manuela teve a impressão que se tratava de um jovem estudante, provavelmente da Federal, que tinha um nível cultural elevado. Tudo isso a atraiu e por alguns instantes prendeu sua atenção nesse jovem que estava com o olhar perdido no movimento do coletivo*.

Nesse momento da viagem já haviam chegado ao centro da cidade e, se não fosse pelo trânsito intenso, não faltaria muito para Manuela chegar a sua casa. Em pé, voltando a se entreter com seus pensamentos anarcoindividualistas, o coletivo foi começando a esvaziar e ela foi indo para trás para ceder cada vez mais espaço aos passageiros apertados na parte da frente. Quando se deu conta estava ao lado do jovem que a pouco estava admirando. De repente ele a cutucou e perguntou se ela queria apoiar a mochila no seu colo. Ela recuou por um milésimo de segundo, pois não via necessidade já que sua mochila estava praticamente vazia, porém pensou melhor e aceitou a oferta. Poucas vezes o acaso dera uma chance tão óbvia para ela iniciar uma conversa, ela não podia perdê-la! Mas acabou perdendo, por um lado pela sua timidez e por outro porque logo em seguida um homem no assento da frente se levantou e fez questão de exercer seu cavalheirismo e oferecer seu lugar a ela. Só a restou dar um doce olhar de agradecimento misturado com tristeza ao jovem rapaz, pegar sua mochila de volta e sentar-se.

 Agora o tempo estava contra ela, já estava a menos de duas paradas do seu ponto, sendo que talvez ele descesse antes disso. Com ar de derrotada ela tentou-se contentar com a idéia de que não havia perdido nada, pois nada havia acontecido. Entretanto não conseguiu conter-se com essa idéia e o seguinte pensamento lhe escapou: “A vida é estranha, pois em um segundo posso acreditar que o acaso está me cedendo uma chance, porém no segundo seguinte ele o tira, como se tudo não passasse de uma ‘ironia do destino’”! Mal concluíra esse pensamento, ela leva um susto ao perceber um celular na sua frente. Aos poucos percebeu que alguém o segurava e era alguém atrás dela, percebeu então que era ele. Notou que havia algo escrito no celular, seu coração disparou, era: “Qual o seu cel?”.

Manuela teve forças apenas para pegar o celular e dar uma pequena olhada para trás com um sorriso meigo. Apagou rapidamente o que estava escrito no celular e escreveu seu telefone seguido do seu nome. Devolveu o ao seu dono e novamente tentou sorrir, mas dessa vez não sabe ao certo se conseguiu. Estava bastante nervosa e envergonhada, mas tentava manter uma pose de serenidade. O ônibus parou e ele desceu causando uma mistura de alivio e confusão em Manuela, afinal o que havia acontecido? E quem era ele? Ela desceu no próximo ponto e esperou pela ligação dele nos dias que se passaram.