quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Boca de Lobo

Acordo de um sonho como se um pêndulo, ao alcançar um de seus extremos, se desprendesse. Levanto de lado com a cabeça pesada e os olhos grudados. Tento manter o cenário onírico em mim, mas só sinto a boca seca e uma dor que atravessa do meio das sobrancelhas até a nuca. Tateio pelo copo d’água na cabeceira, mas não me sacio e levanto por mais. O trajeto até a cozinha é iluminado por uma luz suave vindo da lua se pondo. Na cozinha, os únicos ruídos são o da água descendo pela minha garganta e o do relógio de parede com seu ponteiro menor próximo do quatro. O intervalo da batida do ponteiro dos segundos se estende em um espaço-tempo. O silêncio cresce até entornar. O som da minha voz interior rompe o momento. Tenho que sair daqui.

Enquanto o café acaba de passar, dou ração para Ulisses, que, com o rabo balançando, se curva na minha frente e se espreguiça. Ele ignora sua comida e me segue de volta para a cozinha. Bebo meu café forte e ele deita nos meus pés descalços, aquecendo-os como uma pantufa. A luz branca da lua cede espaço para o amarelo dos postes quando pegamos a estrada. O shih tzu vai na frente, mal contendo a língua na boca. Na direção oposta já se forma um pequeno congestionamento, mas sigo livre no meu caminho. Chego na estrada de terra quando o céu começa a clarear. Pelo retrovisor vejo o nascente ofuscado pela poeira. Paro o carro para apreciar esse momento. Porém, a poeira ao baixar entra por uma fresta da janela de trás e me sufoca e cega. Acelero com força e abro os vidros da frente, mas os olhos já estão irritados. Ulisses late, acompanhando minha tosse, enquanto a névoa de pó permanece entre nós e o sol.

Após uma subida extensa, entramos no vale onde se encontra o vilarejo mais perto do meu destino. Seus poucos habitantes já despertos me olham desconfiados. Não é dia de turistas. Deixo o carro alguns quilômetros depois, no pé do morro mais a oeste. Subimos por um trecho onde provavelmente desce um rio em época de chuvas. Agora, na seca, há só pedras grandes e uma vegetação escassa no entorno. Caminho rápido e o shih tzu se esforça para me acompanhar, mas logo cansa e tenho que carregá-lo na mochila. No alto do morro, o sol está sobre a minha cabeça e paro para beber e comer. Ulisses, agitado, corre e explora a área no tempo em que descanso. Depois atravessamos o morro e seguimos por um corredor de vegetação fechada em um novo vale. Caminho contra uma corrente de vento fria enquanto o sol se pondo atrapalha minha visão. Surpreendo-me quando damos de frente a uma casa antiga.

Bato na porta e aguardo. Deve vir gente só nos fins de semana. Entro arrastando a pesada porta de madeira. A sala é espaçosa, mas há apenas uma poltrona e um tapete em seu centro. Na parede vários pregos sem nada pendurado a não ser uma armadilha boca de lobo enferrujada. Acendo o fogão de lenha e me sento de frente a ele na poltrona que acabo de trazer da sala. Espero a água ferver para um chá e me cubro com um cobertor velho, mas acabo adormecendo. Acordo com o que parece ser duas batidas na porta, o fogão está apagado e a água da panela evaporou. A casa é apenas iluminada pelo brilho da lua. Continuo sentado, supondo que tenha sido o vento ou apenas minha imaginação. De onde estou posso ver o shih tzu dormindo, camuflado no tapete. Duas batidas secas na porta, dessa vez inconfundíveis, até porque Ulisses acorda e passa a latir indo até a entrada. Acompanho-o. Ao farejar algo ele para de latir. “Quem é!?” Ninguém responde. Olho da janela e não vejo nada. Abro a porta apreensivo. O vento entra como um grito agudo.

Um animal alto e magro, da altura do meu umbigo, me encara da entrada. Meus ombros e meus joelhos tremem, mas me controlo e mantenho a calma. O shih tzu recua até o fundo da sala e parece esperar por alguma indicação do que fazer. Dou um passo para trás com cuidado e o animal de quatro patas entra imponente na casa. Meu cãozinho solta um latido rouco. O animal selvagem me cheira com seu focinho comprido e depois vai até Ulisses, que fica mudo novamente. Observo tudo estático, percebo que o animal místico é um lobo. Meu cãozinho vem na minha direção com o corpo tremendo e o lobo o ignora e continua cheirando o cômodo. Agacho e pego Ulisses no colo, com seu coraçãozinho a mil.  Antes que eu faça outro movimento, o lobo para na minha frente a poucos metros. Seus olhos me absorvem. Solto Ulisses. O lobo avança e morde seu pescoço. Ouço um gemido alto que se esvazia antes de ser concluído. 

Sento na poltrona e o lobo me ronda até parar do meu lado direito, toco em seu pelo sujo e duro de terra. De súbito ele me morde. Minha mão sangra e tento puxá-la, mas a besta a pressiona mais com seus dentes. Contraio meu rosto de dor e fecho os olhos. Finalmente ele solta minha mão. Sinto ela quente, latejando. Abro os olhos devagar e vejo Ulisses estirado no chão ensanguentado com seus olhos salientes. Estou sozinho. 


terça-feira, 16 de agosto de 2016

Alquimia poética

Há por aí, em algum lugar escuro e úmido, uma substância impura, composta por poesia e prepotência poética. Tal matéria não é sólida e tampouco abstrata. Circula nas veias da terra e é maleável e quente. Bauman a descreveria com apuro, mas sem jamais alcançá-la.

Os editores a extraem de sua natureza acanhada e no fervor da sua exposição encontra os críticos. Esses, por sua vez, a transformam em palavras congeladas.Contudo, quando essas palavras entram em contato com sensíveis leitores sublimam em um piscar de olhos. É esse o processo de purificação dessa substância, que extrai a poesia leve e gasosa, enquanto a prepotência do poeta escorre pela válvula dos excessos.

Capitalistas detestam essa fórmula, pois a julgam ineficiente. Dizem não conseguirem atingir nenhum estado gasosos, ou, se conseguem, dizem ser tão volátil que os escapa. Querem então propor uma alquimia reversa, tentam decifrar o ouro reduzindo-o em partes. Gramática, semiótica, psicologia e a ciência que mais lhes for útil. Porém, até agora só encontraram frases de efeitos ilusórios, perecíveis e impotentes.

Esquecem ser impossível estudar a anatomia de um dragão chinês. Esquecem que o valor do ouro está em sua raridade. Esquecem que mesmo sem valor, o ouro ainda reluz e seu brilho é suficiente para um pequeno pássaro adornar seu ninho.