domingo, 31 de março de 2013

Diferente de zero


Se o amor pudesse expressar-se matematicamente não teria os sinais de soma nem de subtração, é demasiado simples. Teria mais sinais de multiplicação e divisão, porque para o amor tudo é muito ou pouco. Assim para os mais idiotas românticos, como eu, seria ainda pior, pois teria apenas sinais de potência e razão. Desse modo o número sete viraria quarenta e nove com um beijo roubado, ou então, o oitenta e um viraria nove após receber uma notícia inesperada.

Os números dessa equação pouco importariam, já que as relações amorosas variam muito. Porém antes esses números, grandes ou pequenos, fossem tão exatos como no exemplo citado. Na verdade seu resultado tão pouco faria parte dos números racionais. Poder-se-ia dizer que normalmente fazem parte dos números reais, mas às vezes também dos imaginários. Caso um matemático abusado resolvesse fazer essa conta não se atreveria a arredondá-la, pois sempre o resultado tenderia ao infinito, sendo ou negativo ou positivo.

No final, se o amor que sinto agora pudesse se expressar matematicamente, seria a maldita raiz quadrada de um número fracionado que resultaria em algo menor que um. Porém, por mais zeros que levaria depois da vírgula ainda assim seria diferente de zero. 

sábado, 23 de março de 2013

Contos de Santiago

Cão
Faz frio nas ruas de Santiago, nesta manhã nebulosa. Apenas ouço os passos rápidos de pessoas indo para o trabalho. Passam por mim com rostos cansados e vazios, quase ainda imersos nos seus sonhos noturnos.

Alguns desviam de mim, pois não sigo o fluxo. Ando sem rumo, sem me distanciar de onde despertei, procuro sol e carinho. A comida a muito esqueci. Quando os dias passaram a fome se transformou em uma companheira de quarto, da qual não tive escolha. Por fim acabei por me acostumar com ela.

Vejo, em algum lugar qualquer, meu reflexo. Esse corpo não parece meu, pele e osso mostram um ser fraco. Encontro meu rosto e lembro-me dos seus traços, agora quase apagados. Ah os olhos! Carregam força e esperança. Finalmente me reconheço, esse do outro lado da poça d’água sou eu. Cachorro abandonado.

Coração
Habituado com o escuro e a solidão me tornei caloroso e acolhedor. Dançar, ou melhor, seguir o ritmo da música, é algo de grande prazer para mim. Não saio muito do lugar, mas sou contente com meu trabalho tão importante.

De vez em quando, como agora ao me despertar, sinto uma raiva incontrolável e bato no peito machucando-o. Sinto-me deslocado, não quero mais morar aqui. Afinal onde moro?

As coisas começam a se acalmar, mas parece que tudo encolheu, me sinto apertado nessa casa. Agito-me ao sentir uma pontada e a dor piora. Quero sair daqui, correr para longe até cansar. Quero te encontrar de novo.

Você me bagunçou, sabia? Perdi meu ritmo ao seguir o seu e passou a ser impossível voltar a ser como antes. Suas batidas fortes na minha porta não me deixaram escolhas a não ser abri-la e receber seu calor e luz. Porém, você saiu e a porta permanece aberta. Penso em sair e te buscar, mas como se sou apenas um coração arritmado?







terça-feira, 19 de março de 2013

A sereia

 Os ventos finalmente estavam a meu favor. Estava avançando em direção à terra prometida, guiado pela bússola da precaução, até chegar ao Pacífico, onde icei as velas e baixei a guarda. A velocidade e o prazer do vento no rosto me distraíram  e, de fato, me tornei desatento à viagem (como todo marujo há de ficar) apenas aproveitando as novas brisas.

A sereia a espreita não perdeu tempo e passou a cantar mais alto, me seduzindo devagar com seu canto mais belo. Tomou, então, minha bússola e mexeu em meu leme. Assim, ignorando quem era o verdadeiro capitão, continuei minha viagem sem me preocupar com o destino.  

Naveguei dia após dia e lado a lado com a sereia de cabelos longos e ondulados. Finalmente senti seus lábios, que apesar de estarem gelados e salgados os senti doces e quentes.  Poseidon, por sua vez, poupou-nos de tempestades, mas agora em meu íntimo as desejava, pois somente elas poderiam me tirar desse estado hipnótico que me encontrava.

Ao sentir o balanço do barco por uma onda não muito grande despertei de meu sonho. “Agora não há volta” pensei. Encontrava-me em uma encosta de pedras e correntezas traiçoeiras que formavam um corredor medonho onde se viam barcos naufragados em ruínas.

É desse momento que continuo a história, me encontro a segundos antes de entrar nesse corredor sem volta. Recuo por um breve instante, me sinto incapaz de enfrentá-lo. Lembro-me de outros dias, de minha terra, de meus eternos amores. Puxo com força o ar úmido e frio e encho meus pulmões de vida. Agarro o leme com firmeza, agora somos um só, eu e o barco. A sereia assiste tudo de longe.