quinta-feira, 31 de maio de 2018

Último chorinho

O êxtase estético não é a lua cheia em uma noite fria, nem o bistrô elegante com mesas nas calçadas à luz de velas. Ou os músicos se alimentando e nos alimentando de um furacão de notas ordenadas. Tampouco são as mulheres ébrias de vinho bambeando em cima de suas plataformas finas na calçada de pedras.

O êxtase é a harmonia de tudo isso por entre meus sentidos, enquanto fumo um cigarro de ervas. É o olhar da mulher ébria dançando sozinha a última música da noite, ameaçando me amar. São minhas pernas vacilantes indo em sua direção, gozando a beleza do acaso. É a textura macia de seus lábios finos. É sua cintura delicada e seus ombros firmes desenhando no espaço um quadro abstrato nesse último chorinho.

sexta-feira, 9 de março de 2018

fim do horário de verão



Acordei bem cedo, pra um domingo,
ainda tonto de cachaça. Talvez
essa junção de álcool com
o fim do horário de verão tenha
deixado meu organismo confuso

O que sei é que a luz
do dia ainda é gentil
com as fachadas dos prédios,
deixando espaços para o vento
abraçar as janelas e trazer
vagamente as imagens de ontem

Seu biquíni e glitter invadindo
minha noite nada carnavalesca;
você boiando na cama, distante,
se deixando levar pelas ondas
de músicas tristes; eu viajando
pelo seu corpo montanhoso

Seu rosto contendo todo o brilho da noite,
iluminando os boêmios desse bairro frio e
alienado; nosso calor passando pela fresta
da porta (assim como a lembrança
agora) cobrindo com carinho
todos os moradores da rua


quinta-feira, 8 de março de 2018

obsessões ao vento

Correr atrás do vento é demasiado abstrato para a poesia
Melhor ser o vento fugindo escandalizado
das obsessões dos homens

Do planalto periférico onde o gado ouve o chamado do mar
e permanece estático esperando o suor se transformar
em água potável e o cansaço em prato feito

Do subsolo de um arranha-céu onde
um volvo preto persegue a vulva dourada
e mancha de sangue o couro sem cheiro

Mas é do quarto azul, de um homem hemorrágico,
que o vento mais se afasta (deixando o bafo da morte à espreita)
Enquanto, a ninfa dança em torno da cama
abrindo um buraco sem fundo de momentos inexistentes

sábado, 24 de fevereiro de 2018

O mundo gira mais uma vez sem te derrubar no fim do verão da idade

Marcela é doce espaço
entre mar e cela
infinito e prisão
vasto e contido

Nesse entre há também
um chamado ao vento
amplo e intenso
de um grande coração

Chamando encontros que
desnudam e alentam
deixando fogo estável
(no rubro abaixo dos seus olhos)
brilhar na noite desequilibrada


O mundo gira
mais uma vez
sem te derrubar
No fim do verão
da idade

E nesse dia nublado
em que o outono
sobrepõem o verão
os cílios orvalhados
piscam de prazer

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Orbitando Nana

Planetas em órbitas não nos deixam esquecer
a influência de um corpo no outro.
É tão intensa essa força entre nossos corpos
seminus na penumbra do meu quarto.
A atração dos seus olhos nos meus, dos meus dedos
na sua pele, da sua cabeça no meu ombro,
do seus dentes nos meus lábios.
É linda essa dança orbital desajustada.

Paixão e Melancolia não são planetas, não se engane.
É a mera ausência ou presença dessa energia entre nossos corpos.
Previsão catastrófica de uma colisão nos chega
de uma fenda espaço/tempo.
Desviamos nossa rota e aceitamos a falácia
profética do alinhamento de dois corpos.

Não existe universo de dois planetas, ainda mais
em plena chuva de asteroides carnavalescos.
Pra entrarmos em órbita há uma distância ideal,
que sempre mantém uma saída pela tangente.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

presa

Acorda antes do sol,
já agitado e atento a tudo.
Vai atrás de água e cada
passo é dado com cuidado
e controle do corpo

Para. Ouve algo próximo,
talvez algo perigoso.
Imóvel, com o coração acelerado,
força a respiração ofegante
até dolorosamente diminuir
e não fazer barulho

O som ameaçador se aproxima.
Sente-se como uma pequena presa
diante do maior de todos os predadores.
Move-se lentamente
em busca de qualquer amparo.
Sua mão alcança o interruptor e
acende a luz da cozinha.

O homem bebe a água ainda tenso,
como se houvessem flechas
sendo atiradas a cada segundo
em seu relógio vital

Sente um calafrio em seus pés
descalços vindo do piso de mármore.
O grande vazio permanece à espreita
prestes a lhe devorar.

Útero

Vivo no útero da solidão
Mexo, viro, chuto
Sugo o amor e a indiferença
(desses dois não sei a diferença)
Almejo o parto, o sangue e a dor
A luz no fim do túnel vaginal
A luz da vida nova,
Da vida própria